Crónica de Licínia Quitério | Nós

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Nós

por Licínia Quitério

 

Nós, os cultos, os letrados, os intelectuais, os quase intelectuais, os admiradores de intelectuais, os detractores de intelectuais, os que se auto flagelam por não serem intelectuais, nós, os que lemos muito, de fio a pavio, em diagonal, do fim para o princípio, nós, os que já viajámos pelos sete mares e quase tantos continentes, nós, os de esquerda, que desprezamos a direita, nós, os de direita, que desprezamos a esquerda, nós todos mais ou menos bem na vida, nós, que sabemos muito de muitas filosofias e temos a nossa própria filosofia, nós, que sabemos quase tudo de arte e já pintámos umas paisagens à la Rosseti, nós, que ligamos pouco a gramática, mas já escrevemos umas poesias, bem ao estilo em voga nos cenáculos, e umas ficções mais ou menos ficcionadas, com finais abertos ou semi-fechados, nós, que nos interessamos por inteligência artificial e temos horror à matemática… nós, que não entendemos nada, mas mesmo nada, do gosto e sentir das gentes que vivem a mais de dez quilómetros da costa atlântica do nosso rectângulo ibérico, nós, que somos o suprassumo da modernidade, não conseguimos que os outros, coitados tão atrasados, sigam as nossas ideias, as nossas práticas, nós, que andamos para aqui feitos colonizadores a levar a fé e o império, nós, tão  inteligentes e cultos, somos obrigados a suportar a ingratidão e a maledicência dos que desprezam ou contestam o que desinteressadamente lhes propomos.

Talvez não me tenha feito entender, mas como escrevo “sans peur et sans reproche”, presumo que o defeito é de quem me lê. Modéstia? Bahh! Isso não é para nós, os que somos de facto importantes e temos uma missão a cumprir nesta terra tão mal tratada, coitadita.

Em resumo, nós, os sobredotados, somos incompreensivelmente incompreendidos.

Porque cansada fiquei da prosa supra, razoavelmente sintética e convenientemente hermética, só voltarei a estas crónicas em Setembro, se ainda me suportarem.

Boas férias!


Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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2 Thoughts to “Crónica de Licínia Quitério | Nós”

  1. tb

    Sempre um prazer ler, Licínia Quitério e a sua escrita inteligente e a forma de olhar o mundo.
    Cá te esperamos sim, esperando que tenhas umas excelentes férias!
    Beijinhos

  2. Maria Clara Pimentel

    Nós, os que gostamos de ler o que esxreve desejamos-lhe boas férias e descanso e fkicamos egísta e ansiosamente à espeera de mais!!

    Clara

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